segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Resenha analítica, por Luiz Carvalho.

           O estouro da artéria de um cavalo húngaro – em 1ª edição - é o título da mais nova joia da literatura amazônida. Quando digo “amazônida”, estou me referindo ao caráter existencialmente intrínseco contido nas letras dos textos que compõem a obra, em suas configurações formais e estilísticas e no perfil literário deste livro de contos do jovem escritor amazonense Thiago Roney.

             O título já carrega em si uma nota “estridente” semanticamente. Quer dizer, dá pena só de imaginar o sofrimento de um belo cavalo húngaro em função do estouro de uma artéria de sua rede venal. Afinal, esta raça equina está registrada entre os animais mais qualificados de quatro patas e entre os mais belos “pedigrees” equinos. 

              Em tamanho dimensionado em 21 (vinte e um) centímetros e disposto em 70 (setenta) páginas, o livro foi lançado no Domingo, dia 25 de novembro, às 17:00 hs, no Cauxi - Espaço Cultural pela Editora Multifoco.

             Composto por um conjunto de contos, o livro goza de uma unidade estilística definida - em epígrafe - pelo Autor mediante a expressão metalinguística “realidade da ficção”. Afinal, em tudo há uma “malha de ficção” que chamamos “realidade”. Há malha de ficção no conto “A doença do mundo”. Principalmente, naquela doença de mundo que havia afetado a mente e a existência de Úrsula. “Desânimo” ou “neurose depressiva”, tanto faz. Ao fim e ao cabo, são apenas nomes diferentes atribuídos por profissionais do diagnóstico para as tais “doenças de mundo”. De fato, não presume o Autor que todos nós talvez sejamos afetados de alguma maneira pela tal “doença de mundo”? Em suma, tudo o que nos distancia - enquanto gente - é a capacidade de incubação da doença de mundo que cada um de nós possui. Todavia, o que nos aproxima é, seguramente, a tendência renitente de recorrer às ilusões a fim de sarar as feridas de nossa alma. Placebo ou líquido semênico, tanto faz. Para aliviar as dores da existência qualquer pílula, qualquer placebo serve. Mesmo que o preço a ser pago seja o de consumir 300 (trezentos) mililitros de sêmen diário. Não foi efetuando religiosamente esta receita que Úrsula curou a sua doença de mundo? Eu, hein! Afinal, tudo isto constitui essa inapelável teia de existência que é encoberta pelas malhas da ficção!
          Há, também, malha de ficção no conto intitulado “Afetuosos teoremas de Martin”. Mesmo nos “farrapos de um prédio em ruína”, há malha de ficção sobre a realidade. A ferramenta que Martin usa para elaborar seus afetuosos teoremas é o cálculo matemático. Nessa malha de ficção que envolve a realidade, o cálculo matemático de Martin mensura até os “sentimentos ainda petrificados no ar”. Afinal, essa malha de ficção é constituída, no limite entre os números e as letras, de “conhecimentos virtuosos sobre os ângulos hiperbólicos”, de “números inscritos na fala da teatralidade familiar” e de “diferenças hiperbólicas e parabólicas entre números e letras”. Em seu afã de elaborar teoremas afetuosos sobre os “farrapos de um prédio em ruína”, Martin usa “números para captar afetividade e mensurar falsificação”. A personagem deste conto procede como se fosse um filósofo da ciência em grande estilo. Nessa intrincada malha de ficção que encobre a realidade, Martin propõe uma conjectura de trabalho em pesquisa teórica pura. Ele que descobrir a “possibilidade de um isomorfismo entre a profunda mensuração da estupidez humana e a extensão infinita do universo”. Ao fim de suas elucubrações, Martin descobre bombasticamente seu afetuoso teorema. Trata-se do “cálculo da profundidade inversa dos sete palmos debaixo do céu”. Em sua fórmula implacável, comparada a uma “espécie de Bluetooth”, a proposição extraída da pesquisa de Martin revela um número metatransfinito derivado de seu cálculo matemático. Eis, então, a expressão de seu afetuoso teorema: “O arquiteto do calvário vai me mandar para o inferno! E sei que o inferno é a sete palmos do chão”.
            Há malha de ficção até nas caçadas mercadológicas de Mânfrede de produtos “made in’s”. A personagem deste conto intitulado “O caçador de made in’s” é extremamente fleumática quando se trata de caçar o “made in” dos produtos. É que Mânfrede, como um pêndulo à biruta, denuncia a superexploração e a enganação dos trabalhadores em todos os níveis. Nesse sentido, a sua denúncia se estende desde a camisa “made in” Haiti que o tio comprou, passando pelo carro “made in” Brasil que o primo havia adquirido, até o remédio “made in” África que o tio consumia. Não obstante, quando se trata de encarar o trabalho nas condições de alienação e espoliação do sistema e das relações de trabalho, ele diria seguramente o seguinte: “Nas condições atuais em que se encontra a divisão do trabalho e a sua remuneração, eu prefiro morrer a me entregar a essa exsudação de minha existência”. Nesse caso, Mânfrede se mostra definitivamente uma personagem “made in” irascível. Com efeito, trata-se de uma personagem incompreendida filosoficamente. De fato, não é no próprio seio familiar que transpira o preconceito popular contra a inutilidade dos estudos de filosofia e da formação filosófica? Sapecou-lhe o irmão mais velho: “A Filosofia certificou-lhe vagabundo!”. Mas Mânfrede está além dessas picuinhas pseudo-intelectuais. A sua equidistância do mundo do trabalho não se deve a nenhum não-enquadramento seu à moralidade que dá suporte ao sistema de exploração do homem sobre o homem. Diversamente, o seu distanciamento do mundo do trabalho é uma função de sua caçada implacável aos motivos espúrios que regem o selo de qualidade “made in” de produtos. Foi caçando esses selos de qualidades das origens de produtos que esta personagem formou a sua compreensão sobre o mundo do trabalho. Ou será que ela está aquém das tais picuinhas intelectuais? Será que o seu suicídio resultou das pressões exercidas pelos preconceitos anti-filosóficos que sofrera até mesmo em casa? “Por que teria se enforcado, meu deus?”, exclamou a mãe. Em se tratando de motivo-morte, ele o deixou escrito com sangue: “Como acreditar num mundo que tem como epitáfio Laborum meta?”. Decerto, ele é incorrigivelmente um herdeiro radical de Paul Lafargue. Com a diferença de que – diversamente do genro de Karl Marx – ele não fez o elogio discursivo da preguiça. Ele a usufruía. Domesticamente.
              Há, ainda, malha de ficção no conto intitulado “O dia que comi como o faz um rico”. No dia em que Bino comeu como só um rico é capaz de comer ele realizou um desejo recalcado de infância. Embora ele não gostasse de comer peixe com espinha e odiasse o cheiro de pitiú que os peixes têm, há malha de ficção até na culinária amazônica. Seu pai, que fora peixeiro, havia-lhe encucado uma regra da culinária moral amazônica. Trata-se daquela pecha de que “comer peixe sem espinha é uma frescura”. Coisa de gente rica! Coisa de japonês! Então, Bino, que não ficou milionário, comeu como se fosse um rico. Quer dizer, ele “desespinhaçou” o peixe e comeu somente a carne branca e macia dele. Quem sabe não haja nesse gesto de Bino, de comer como só um rico é capaz de o fazer, uma pulsão burguesa recôndita comprimida em sua alma pequeno-burguesa explícita!
           Já o conto que dá título ao e-book aqui resenhado analiticamente é “O estouro da artéria de um cavalo húngaro”. Lino, o protagonista deste conto em epígrafe, explicita, desde logo, a essência estética de seu “metier” literário. “Minha literatura será o estouro da artéria de um cavalo húngaro jorrando sangue com vodca russa na cara dos meus contemporâneos”, assacou Lino, como se tivesse comentando na orelha de seu próprio livro ainda por ser feito. Afinal, ele não queria ser um pipoqueiro a escrever sobre o amor, sobre as pipocas ou sobre os palhaços. Não obstante, o ponto esteticamente altissonante desse novel estilo literário é a sua malha de ficção que chamamos realidade! Quer dizer, as malhas da ficção que produzem o tecido de realidade revolveu toda a determinação tomada por Lino. Ele foi levado pelas forças que produzem esse tecido de realidade a superar a pertinência dos subumanos à esfera do amor de desintegração e constituir, em limites sobre-humanos, um umbral de amor de compartilhamento. Eis a proposição cantada pelo coro trágico: “O amor de desintegração somente pode se transmutar em amor de compartilhamento quando a tragédia cumpre o seu papel mediador”. Em suma, as malhas da ficção cumpriram, mais uma vez, o seu desiderato implacável. Foi necessário que thysanura fosse sacrificada por Lino para que ontologicamente o livro se tornasse realidade e o amor se impusesse em toda a plenitude sub especie aeternitate. Justo para ele que não acreditava no amor!
             No âmbito estético do conto intitulado “O gozo sem vida de Joana”, o papel das malhas de ficção na produção de realidade é sumaríssimo. Ele é conversível em sentenças protocolares do tipo: “Quando os Raimundos vivos não dão no coro de suas Joanas, os Josés da vida além-cerca-caseira fazem as borboletas multicoloridas dessas colecionadoras vorazes, voarem em espiral aquarelada das entranhas dessas Joanas em gozo feito um arco-íris de prazer”. Ou, então, esse papel exercido pelas malhas de ficção pode ser convertido nesta outra máxima: “Quando os Raimundos mortos não prestam mais nem para motivar a pulação de cerca de suas Joanas, aí, meu irmão, das entranhas dessas colecionadoras vorazes de panapanã se esvoaçarão apenas uma espiral de borboletas em aquarela de sangue”. Em outras palavras, essas Joanas apenas gozarão. Elas ainda ejacularão borboletas em espiral. Mas sem vida! 
        “Óculos do vô Tico” é o título de um conto-poema ou um poema-conto? Nunca saberemos. Ou, inversamente, será que virá o dia em que nos apropriaremos dessa sabença? Afinal, não é esse o papel das malhas de ficção na produção de realidade? Decerto, os óculos de vô Tico são ambifocais. Poderiam, pois, muito bem, visualizar os dois formatos dessa escritura. Como um tabelião das letras, vô Tico poderia muito bem chancelar, com seus óculos ambifocais, esses dois formatos do mesmo texto literário. Por que não? Afinal, no “tempo da transmutação” seus óculos ambifocais não veem “nada além de uma linda ilusão”. Contanto que, nas malhas da ficção, a realidade seja produzida como sendo “nada além, nada além de uma ilusão”. Quem sabe, não foi, por isso, que o contista-poeta ou poeta-contista – contrariando a inscrição na lápide de vô Tico que rezava: “Epígrafe é a citação no começo da obra” – deslocou-a para o final do texto?
             O conto “O tabelião dela” configura um repto da eterna repetição ou do eterno retorno. A rotina da vida é, todo o dia, a mesma lenga-lenga. “Reconheço e dou fé por verdadeiros a firma do fulano. Tabelião de Ofícios. Carimbo e assino. E novamente. Reconheço e ...”. Mais um dia e lá vem a mesma lenga-lenga. “Reconheço e ...”. E todos os dias é a mesma coisa. Tudo é só uma eterna repetição. Mas tudo é, também, um eterno retorno. Até que o tabelião descobre, certo dia, que ela parece estar indo embora. Ora! Não dizem que um dia ou outro ela vai embora? Foi desse jeito que ela se foi. Em um dia qualquer, quando o País andava mergulhado em greves e crises econômicas, Adolfo teve que chancelar a ida embora dela. “Reconheço e dou fé ...”.
            O conto intitulado “439” relata uma esquizo-experiência daquelas que ocorrem todos os dias no mundo periférico de regiões metropolitanas. De fato, todos os dias alguém pira no meio do povão. Nesse conto, algum anônimo popular pira no transcurso de um busão da linha 439. Quem não piraria nesse verdadeiro inferno viário coletivo público que são os busões? 
Tem gente que acha que vitamina C serve pra tudo. Serve pra gripe. Serve pra estômago. Serve até pra diarreia! No conto “Vitamina C”, ela ganha uma nova função terapêutica. “Uma coisa ficou certa. Ela trazia uma conciliação, mesmo que inconciliável”.
              Dizem que o menino é o pai do homem. A história de Pedrinho confirma essa máxima popular. Foi em criança que ele definiu frente ao pai o que ele queria ser quando crescesse. No conto “O pintor”, Pedrinho diz pra mãe que já sabe o que quer ser quando crescer. Ele vai ser pintor de gente morta. Se ele vai dispor seus talentos profissionais e artísticos para mecenas, Papas ou IML,s tanto faz. É o menino que define o homem.
Esta é, pois, uma obra que já nasce em grande estilo.
            O resenhista espera que os leitores dela se equivalham à dimensão estética e estilística que ela apresenta Livro novo. Escritor brilhante Panteão literário. É este o universo composto por essas grandezas que envolvem o jovem literato Thiago Roney  e o seu primogênito das letras O estouro da artéria de um cavalo húngaro.

Luiz Carvalho, filósofo e escritor amazônico.

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