quarta-feira, 14 de agosto de 2013

Notas sobre um jovem contista: O ESTOURO DA ARTÉRIA DE UM CAVALO HÚNGARO, de Thiago Roney

Por Alfredo Monte



“Minha literatura será o estouro da artéria de um cavalo húngaro jorrando sangue com vodca na cara dos meus contemporâneos”.

Este é o trecho que justifica porque O estouro da artéria de um cavalo húngaro é o texto-título da coletânea de estreia de Thiago Roney.

Antes de abordar o referido conto, comentarei outros (são 12 ao todo), mas quero chamar a atenção para a presença da violência estilizada (o sangue com vodca), a referência “exótica” (o cavalo húngaro) e a preocupação de tematizar a própria literatura, típicas (é quase uma obsessão, quando não se trata de simples modismo) nos escritores das últimas safras.
O projeto literário de Roney se mostra bem mais interessante do que essa vinculação geracional, ainda que a realização textual muitas vezes deixe a desejar. Para delineá-lo minimamente, efetuarei uma operação arbitrária,  dividindo o livro em três blocos de quatro.
O jovem autor de Manaus (nascido em 1985) deve ter percebido, claro, que os quatro primeiros representavam uma boa introdução à sua produção até aqui (o livro foi editado no finalzinho do ano passado), e a leitura em conjunto reforça um vínculo mais imediato entre três deles (o vínculo com o conto de abertura, cujo título já é um achado, A doença do mundo não é tão óbvio, mas é forte), apesar da disparidade dos resultados: Afetuosos teoremas de Martín, O caçador de made in´s, O dia que comi como o faz um rico. Neles, Roney se mostra um dos representantes promissores de um novo vigor do veio mais expressionista e focado no social em nossa jovem ficção, para além daquela tematização da literatura e da vida literária, e todos seus subprodutos já desgastados (a metalinguagem, o experimentalismo gráfico, a morte do Sujeito, a suspeição quanto à legitimidade do Narrador, etc etc etc), e coloca em foco um dos temas mais candentes da contemporaneidade: a submissão das relações familiares à lógica do mercado, os ritos de passagem entre gerações recodificados como a “inserção do jovem no mercado de trabalho”.
Assim, o caçador de made in´s se enforca, desgostoso com a possibilidade de que viver tenha como epitáfio (como vira num cemitério) “laborum meta”; assim, o conflito  com o pai, calcado na (nunca ultrapassada, infelizmente) questão sexual  do narrador (gay) de O dia que comi como o faz um rico, não se resolve pelo descompasso profissional entre as gerações (o pai, peixeiro; o filho, médico com doutorado nos EUA, embora se apaixone e tenha um relacionamento com um…peixeiro); assim, emAfetuosos teoremas de Martín (o leitor deve ter notado o capricho de Roney com os títulos), as figuras familiares se tornam presenças fantasmáticas, sombras, axiomas miasmáticos.
Pena que o resultado textual nem sempre siga esse vigor de ideias, de percepção do mundo atual.Afetuosos teoremas de Martín, principalmente, precisaria de uma revisão radical.[1]
Quanto ao conto A doença do mundo, ele me parece corresponder ao Zeitgeist convocado pelos outros três, essa interpenetração tão contemporânea de obrigação de produtividade (e até a alegria e a diversão se tornam uma espécie de produtividade neste nosso mundo) e de um desânimo corrosivo. Gostei do fato de que neste conto as referências culturais (no caso, especificamenteLaranja Mecânica) se resolvem não como referência apenas, mas dentro do imaginário e movimento do próprio texto (ainda mais sabendo que Roney pode se valer de outros recursos, não apenas dessas referências, como acontece com tantos outros autores jovens). É a história de uma deprimida que começa a tomar uma substância misteriosa e volta a ser uma pessoa “animada”, “produtiva”, para espanto do seu companheiro. Deixo ao leitor descobrir o componente principal desse preparado tão eficiente.
O segundo bloco de quatro, a meu ver, deveria encerrar a coletânea e assim ela ficaria como um registro sólido de um momento da vida de escritor de Thiago Roney. É a ele que pertence o conto-título, cujo contraste do tipo de atividade profissional (pipoqueiro) e de aspiração (escritor) renderia mais, sem frases de efeito (“O amor é um desintegrador da substância coletiva”). De qualquer forma, o relato evolui para uma situação bastante  engraçada, bizarra e interessante, aproveitando como “amada” um ser bastante presente no imaginário da leitura e destino dos livros. Só achei imperdoável e rebarbativa (e, em última instância, mostrando pouca confiança na inteligência e atenção do leitor) a última frase do texto, que destrói todo o efeito construído pelo autor.
Já O gozo sem vida de Joana é, a meu ver, um dos três melhores momentos do livro (junto com A doença do mundo  e O dia que comi como o faz um rico)—e  até poderia encerrá-lo; e prova de que um realismo mágico que não seja apenas “saramandaico” (ou seja, personagens esquisitos, sem nada por trás que justifique essa “esquisitice”) ainda é possível. Temos uma mulher que o marido não satisfaz, um amante tosco, borboletas,  orgasmos… e um belo final, como sempre se diz que um conto deve ter quando constrói passo a passo seu “efeito”. Aqui, vemos que Thiago Roney pode ainda ser imaturo em vários aspectos, mas tem o temperamento e a volúpia do escritor verdadeiro.
Também nesse compasso, O tabelião dela, onde ele procurou ajustar o tom narrativo a um personagem alienado do mundo, e que no entanto filtra para nós a realidade à sua revelia, é quase um personagem de Francisco J. C. Dantas em miniatura (só não convence muito, para um personagem autoproclamado antimoderno, que ele assista a filmes de Lynch ou Tarantino, esses são filmes a que o escritor Thiago Roney assiste, e ele precisa estar atento para esse tipo de interferência das próprias referências).
Já Óculos do vô Tico é uma experiência (inclusive na disposição tipográfica), que pode ser louvável para os rascunhos, esboços, projetos e tentativas, mas que devia ter ficado na gaveta.
O mesmo se pode dizer com narrativas do terceiro bloco, o qual enfraquece muito o conjunto, por conter os textos mais imaturos, mais mal-acabados, e que só estão fazendo número em O estouro da artéria de um cavalo húngaro.
Assim, eu também cortaria sem dó nem piedade 439 (nem tudo o que se escreve deve ser publicado, é uma lição preciosa e sempre desconsiderada), assim como O pintor. Nem vou me deter neles. Já Vitamina C , no qual voltam os miasmas familiares, a presença dos “entes queridos” meio fantasmática e tênue, apesar de me parecer mais uma primeira versão, ainda tentativa, de conto, um esqueleto de texto, uma coisa meio esboçada, em termos de atmosfera é um dos mais interessantes do livro, com várias tensões aflorando, apontadas aqui e ali, de uma forma que se entremeia ao cotidiano familiar (e que o coloca ao lado daqueles do primeiro bloco).  Da maneira como está, dá para gostar do texto, mas creio que poderia ser um baita conto, se fosse mais trabalhado. E a vitamina C do título,que poderia representar um elemento de ironia dissolvente, acaba caindo de paraquedas no final da narrativa.
O último conto,  O Jogo ou Como cortar uma faca com outra faca é muito problemático, principalmente porque para marcar a diferença da “sedução” do escritor, em contraponto à sua figura real insatisfatória e “broxante” (“Mas como pode existir um gênio nas letras, do tipo que  escreve isto (…) E mesmo assim na vida ser um bundão?”), ele coloca trechos do sujeito, e eles são lamentáveis, quase insuportáveis. O texto me lembra as experiências de André de Leones, antes de Terra de Casas vazias, discursos narrativos meio curto-circuitados que não se resolvem muito bem e, ao contrário de A doença do mundo, aqui as referências (no caso, O jogo da amarelinha, de Cortázar) não funcionam muito bem.
Achei genial a frase “Porra, gosto de literatura pra caralho, mas gosto de pica também” (tem outra ótima,  “Deixou meu espírito molhadinho de novo”, lembrando que é o jogo de sedução entre autor e leitor) . E ficou  bacana a girada autorreferencial que “quase” termina o relato e o livro:Quem sabe não conheço o carinha que escreveu O estouro da artéria de um cavalo húngaro”.  Pena que é “quase”, não sei se é necessária a sequência (aliás, uma frase meio desajeitada): “Ah, e lógico que o filhadaputa não me broxe”. O problema central talvez seja a oscilação entre uma possível sátira aos próprios personagens e um possível erotismo de negaças e aproximações.
Contudo, como se pode constatar, temos de ficar de olho em Thiago Roney. Não acho que ele vá nos broxar no futuro.

(escrito especialmente para o blog, em agosto de 2013)

Alfredo Monte é doutor em Teoria Literária e Literatura Comparada pela USP e crítico literário do jornal A tribuna de Santos.

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[1] Mesmo nos outros, há problemas em certas frases mal ajambradas (“a dúvida arfava em minha cabeça”), em adjetivos mal escolhidos (“saltei insólita”), mesmo que se pense na “liberdade criativa”. Mas já apontei para o autor os problemas vocabulares e gramaticais, e eles não vêm ao caso aqui, onde o objetivo é dar uma ideia do livro ao meu leitor.

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